Gatos, frontispícios e outros bichos

Uma mistura de cachorra, girafa e zebra. Assim se define Sofia Mariutti na orelha de seu livro Tem um gato no frontispício (Baião, 2024), desenvolvido em parceria com o ilustrador (ou melhor, leão com patinhas de formiga) Vitor Rocha. Um convite ao manuseio, ao convívio com o objeto livro e seus jargões editoriais de maneira muito divertida e que desperta bastante a imaginação. Nesse sentido, o lúdico é sua matéria essencial, seja no texto sintético e descontraído ou nas ilustrações, que evocam os traços e as cores características de desenhos infantis.

Em frases breves e bem humoradas, sempre remetendo a animais, a linguagem utilizada é voltada para a autorreferencialidade que se desdobra para além do próprio livro. Ao mencionar os bichos, indicando as páginas e os lugares que ocupam (e podem estar bem antes ou depois; daí o mencionado convite ao manuseio), seja a lagarta na lombada, o elefante na quarta capa ou, é claro, o gato no frontispício, somos levados ludicamente a percorrer o livro para constatar se tal bicho efetivamente se encontra no local indicado.

Questionada sobre o processo de elaboração do livro, Sofia respondeu que “o texto tinha a ideia de brincar com essas palavras malucas, colofão, frontispício, e fazer um jogo de procurar e achar bichos pelas partes do livro, para conhecê-las melhor. Mas a pergunta final, ‘e no miolo, o que é que tem?’ era muito genuína, porque eu não tinha ideia do que ia ter no miolo. Cada página ia falar de alguma parte do livro, mas o que ia estar ilustrado nessa página? Aí, junto com o Vitor Rocha, as editoras, designer e produtora gráfica da Baião, tivemos essa ideia de contar na história ilustrada como um livro é feito. E aí apareceram os personagens – o cachorro escreve, as zebras editam, o leão ilustra, e assim por diante. Foi um processo muito maluco com vários nós na cabeça no meio do caminho!

O Glossário e o Quem é quem (quem trabalha para os livros existirem) reúnem a maior parte dos textos, funcionando como uma espécie de apêndice da obra em si. Talvez até poderiam ser mais distribuídos ao longo do livro, mas creio que, da maneira como foram concebidos, podem funcionar muito bem como um convite para os pequenos leitores desenvolverem também os seus desenhos, retratando por exemplo as zebras (editoras), cachorras (autoras), dentre outros bichos envolvidos na feitura dos livros. E, particularmente, admiro bastante obras que implícita e espontaneamente convidam o leitor a desenvolver atividades (escrita, reescrita, ilustração etc.). Dessa maneira, Tem um gato no frontispício é uma obra rica de possíveis desdobramentos, contribuindo bastante para o trabalho de leitura com e para crianças.

Nas palavras de Sofia, “a gente pensou em bichos que teriam afinidade com aquela atividade – tipo a coruja, que é sabidamente sabichona (desde o corujão do ursinho Pooh), a gente achou que fazia sentido ser a bibliotecária. Os polvos e lulas, que têm muitos braços, estão comandando as máquinas na gráfica. Mas alguns bichos entraram mais pelo som, então nem sempre faz o maior sentido do mundo.

Vitor Rocha é ilustrador e designer. Tem formação pela Escola Panamericana de Artes e Design. Estudou letras na Universidade de São Paulo (USP) e foi bolsista no Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), graduando-se na Sorbonne Université. Sobre seu trabalho em Tem um gato no frontispício, Vitor menciona que “cada livro tem sua linguagem, se compõe de um universo próprio, com seus próprios códigos, rimas e brincadeiras. Por isso gosto de me aproximar de um projeto como esse imaginando quais são as regras que podem compor esse novo mundo. Pro Tem um gato, me parecia fazer sentido chamar a atenção pras cores que compõem o sistema de impressão (CMYK, ciano, magenta, amarelo e preto). Como o livro é bastante horizontal, me vi influenciado em minhas pesquisas por pergaminhos japoneses, onde a leitura visual é mais contínua e onde a noção de profundidade se compõe pela sobreposição de planos. Claro que existem técnicas e manias que reaparecem no meu trabalho: gosto de chamar a atenção para os materiais, de alertar o leitor de que existe papel, matéria no desenho, isso dá esse efeito tortinho e (acredito mais espontâneo) pra ilustração.

Sofia Mariutti escreve, traduz e edita. Autora dos livros de poemas A orca no avião (Patuá, 2017) e Abrir a boca da cobra (Círculo de Poemas, 2023), além do ilustrado Vamos desenhar palavras escritas?, em parceira com Yara Kono (Companhia das Letrinhas, 2022). Pelo visto, o lúdico e a referência aos bichos costumam estar bem presentes em sua escrita, como um frontispício, que “fica mais perto da frente do que do precipício. Também é conhecido como folha de rosto […]. Ah, e às vezes a gente encontra um gato, um lindo gato no frontispício.”

Referências

MARIUTTI, Sofia. ROCHA, Vitor. Tem um gato no frontispício. São Paulo: Baião, 2024.

MARIUTTI, Sofia. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 4 jul. 2024.

ROCHA, Vitor. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 6 jul. 2024.

| Publicado originalmente em julho de 2024, na revista eletrônica Revestrés.

Oração para desaparecer, de Socorro Acioli

Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. (p.13) Com essas frases, Socorro Acioli inicia seu romance Oração para desaparecer (Companhia das Letras, 2023) de forma bastante pungente e instigante. As duas primeiras páginas são arrebatadoras e, de imediato, as incluí na minha lista de aberturas de romance que mais me agradaram. Em seguida, pela própria natureza da história a ser contada, a narrativa vai assumindo um caráter mais suave e reflexivo, acompanhando a gradativa maturação necessária à protagonista para recuperar sua força física e, principalmente, sua memória, para que possa redescobrir seu lugar no mundo.

Numa observação superficial, pode-se até supor que, em Oração para desaparecer, a escritora tenha mantido uma pegada um tanto parecida com seu livro anterior, A cabeça do santo. Novamente, uma narrativa pontuada pelo fantástico e desenvolvida a partir de um peculiar acontecimento real ocorrido no interior do Ceará, sua terra natal. Em A cabeça do santo, temos como ponto de partida a escultura de Santo Antônio, com sua gigantesca cabeça separada do corpo, na cidade de Caridade, que, na obra de Socorro, transformou-se na fictícia e abandonada cidade de Candeia. Em Oração para desaparecer, temos como mote inicial a história verídica de uma igreja localizada em Almofala, distrito do município cearense de Itarema, que permaneceu soterrada por muitos anos e depois ressurgiu após o movimento das dunas que a haviam encoberto. No entanto, ainda que ambas as narrativas tenham surgido enlinhavando realidade, fantasia e ficção, são construções estéticas bem distintas em relação ao ritmo e à arquitetura narrativa. As cenas ágeis de A cabeça do santo, que em alguns trechos chegam a lembrar romances de aventura, às vezes contrastam com o tom mais reflexivo e intimista da maioria dos capítulos de Oração para desaparecer.

Socorro Acioli constrói seu romance a partir da história da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que foi soterrada pelas dunas e assim permaneceu, até ressurgir quase cinco décadas depois. De autoria desconhecida, a imagem que consta na parte interna da capa é justamente uma antiga fotografia da fachada da igreja. “Vieram para rezar a última missa, pedir a Deus que evitasse a destruição pela areia e levar as imagens. Há uma foto desse dia. Areia pela metade, as pessoas na porta, marcando o fechamento oficial.” (p.148)

Há uma crônica intitulada Areia e vento, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1946, sobre a inusitada história da igreja de Almofala. Diversos elementos comentados por Drumond também estão presentes na obra de Acioli. Em depoimento concedido ao Diário do Nordeste, Socorro menciona a crônica de Drummond e sua influência no processo criativo de Oração para desaparecer. “Ele diz que no dia em que o padre Antônio Tomás foi lá tirar as imagens, uma prostituta da cidade, chamada Joana Camelo, jogou um tamanco na cabeça do sacerdote para recuperar a imagem de Nossa Senhora – que, no entendimento dela, era dos Tremembés. Ali eu tinha a personagem. Então consegui pensar na história.

A igreja começou a ser soterrada em 1897. No ano seguinte, foi feita a retirada das imagens e peças de culto, mencionadas na crônica. Há também menção a um pacto de paz não-cumprido com os Tremembés. Além disso, a própria população de Almofala também foi se retirando, aumentando ainda mais a paisagem de abandono, até que, 45 anos depois, o que restava da estrutura de alvenaria da igreja fosse desenterrada pela ação da natureza, sendo posteriormente restaurada.

Além da Almofala no Ceará, há também outra em Portugal e mais outras pelo mundo. E através do fantástico, essas diversas Almofalas podem se entrelaçar por meio da jornada de seus ressurrectos, como são chamados no livro os que ressurgem da terra, como que renascidos da morte, incluindo a protagonista, que ressurge da terra, em Portugal, muitos anos depois de seu desaparecimento no Brasil, despida, sem cabelos, sem memória e ferida. “Eu estava nua, com medo e morrendo de ódio daquela mulher me chamando de rapariga. Um sopro gelado no rosto esfriou as gotas na minha pele e parecia congelar. Ainda não enxergava bem, não ouvia com clareza, achava estranhas aquelas vozes, escutava tudo sem entender nada, delirava sobre morrer.” (p.14)

Talvez um dos maiores desafios de Oração para desaparecer tenha sido construir uma narrativa com diversos capítulos baseados quase que exclusivamente em diálogos, e é dessa forma que vamos conhecendo a vida pregressa da protagonista, Cida, que ressurge em outro continente, onde busca agora reconstruir sua vida. O uso contínuo desses diálogos se coaduna bastante com essa busca, na qual se tenta resgatar o passado através da linguagem, da verbalização. E entre esses fragmentos de passado e presente, encontramos os enlaces de Cida e Jorge, e de Joana e Miguel. Numa correlação de magia, ancestralidade e pertencimento, o livro de Acioli também é uma celebração do amor.

Penso que a autora poderia ter explorado mais a capacidade de clarividência da protagonista, sua capacidade de ver e ouvir pessoas já falecidas. Muitos desdobramentos disso poderiam ter sido explorados. Assim como alguns vaticínios em relação aos ressurrectos, incluindo a afirmação de que Cida seria a última e a primeira mulher. Mas os mistérios e as perguntas sem respostas também fazer parte da narrativa.

Curiosamente, é mencionado que a oração para desaparecer de fato existe, entre os Tremembés, mas não é a que foi publicada no livro de Socorro Acioli, este que, pela competência de sua escrita, não há de desaparecer.

Referências

ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

_________. Oração para desaparecer. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

BARBOSA, Diego. “Oração para desaparecer”: Novo livro de Socorro Acioli é carta de amor à Almofala, Ceará e Portugal. In Diário do Nordeste, 09 de dezembro de 2023. Disponível em https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/oracao-para-desaparecer-novo-livro-de-socorro-acioli-e-carta-de-amor-a-almofala-ceara-e-portugal-1.3453544. Acesso em 25 de maio de 24.

| Publicado originalmente em maio de 2024, na revista eletrônica Bangüê.

Titus Andronicus, William Shakespeare

Titus Andronicus. Supostamente a primeira tragédia de Shakespeare, bastante sangrenta e com uma primeira cena longa, intensa e repleta de reviravoltas, pedra fundamental de toda a trama. Em alguns momentos, como seria natural que acontecesse, deixa transparecer a cultura elisabetana interferindo na sua visão do universo romano. No entanto, cumpre com grande eficácia sua função de catarse, e por diversos momentos chega a provocar o horror. É possível que Titus (o desafortunado general romano que volta triunfante para casa mas, logo em seguida, mergulha num ciclo de desgraças que parece não ter fim) possa ser tomado como um protótipo para o desaventurado rei Lear; assim como Tamora, a rainha goda desposada pelo recém empossado imperador romano, pode ser relacionada ao arquétipo de Lady Macbeth; e o pérfido mouro Aaron ao arquétipo de Iago (de Otelo); a tradutora Barbara Heliodora tece elucidativo comentário sobre isso logo no prefácio. Também não deixa de ser curioso que a maneira como foi desenvolvida a brutalidade da peça, repleta de vinganças, assassinatos, mutilações, decapitações, estupro, canibalismo involuntário etc., tenha me feito pensar em várias obras cinematográficas contemporâneas, como alguns filmes de Quentin Tarantino, por exemplo, Cães de Aluguel e Os Oito Odiados, sobretudo. Há bastante controvérsia se Titus Andronicus tenha sido realmente uma peça escrita por Shakespeare. Se a considerarmos de sua lavra, teríamos o bardo inglês ainda em seus primeiros passos, mas já indicando os vislumbres de uma longa estrada que, indo muito além de sua época, revelava a inquietude e a insensatez humana.
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| Publicado originalmente em dezembro de 2016, no blog Ágora da Taba.

Hamlet, William Shakespeare

Adriano Lobão Aragão

Sendo para mim uma obra de leitura recorrente, todas as vezes que torno a ler Hamlet, vejo o jovem e angustiado príncipe da Dinamarca sob um novo aspecto. Das três traduções a que costumo recorrer – a de Barbara Heliodora e sua mãe, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça; a de Millôr Fernandes; e a de Lawrence Flores Pereira, todas de grande mérito e excelência –, tenho predileção pela de Barbara Heliodora, tanto pela minha imensa estima por seu trabalho de crítica e tradutora, quanto por ter costumeiramente me habituado ao seu estilo de traduzir Shakespeare, sempre preocupada com a dimensão teatral da obra, com o trabalho do ator, sem tornar o texto excessivamente contemporâneo e sem grandes rebuscamentos linguísticos.
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Escrita, talvez, entre 1599 e 1601, trata-se da mais longa peça de William Shakespeare e a que seu protagonista apresenta a maior quantidade de falas. E tal estrutura torna o personagem ainda mais complexo e instigante. Vale lembrar que o enredo de diversas de suas peças não costuma ser uma criação de Shakespeare, mas uma releitura de obras anteriores ou temas históricos. Um dos grandes méritos do teatro shakespeariano é justamente essa capacidade de dar uma nova e surpreendente amplitude a tais temas e enredos, muitas vezes já abordados anteriormente, representando, a partir deles, o dilema humano e sua precária condição. Em Rei Lear, temos um monarca que envelheceu sem se tornar sábio; em Otelo, o nobre e valoroso mouro sendo escravo de seu ciúme cego e doentio; e na peça em questão temos o jovem Hamlet vivenciando o tormento de descobrir que seu pai, o rei Hamlet, foi assassinado pelo próprio irmão, Cláudio, o mesmo que, logo em seguida, desposou sua mãe. A partir de então, eis a angústia de uma vingança que se protela, eis os monólogos que revelam que o príncipe hesita, pensa em abandonar a própria vida, busca levar adiante seu ímpeto de justiça, reflete sobre os reveses da vida, eis que vivencia dolorosamente diversos questionamentos. As dualidades perceptíveis ao longo da peça desnorteiam a cada leitura. Por exemplo, Hamlet se finge de louco, enquanto sua amada Ofélia efetivamente enlouquece. Hamlet teve seu pai assassinado, mas torna-se o assassino do pai de Laertes. Cláudio, que chega ao trono após derramar veneno no ouvido do rei Hamlet (o pai), enquanto este dormia, usa de artimanha verbal contra o príncipe Hamlet (o filho), instigando-o através de palavras (aqui entendo metaforicamente como “envenenar pelos ouvidos”) para um embate onde almejava que o jovem fosse efetivamente envenenado e, consequentemente, morto.

A Dinamarca de Hamlet é um reino mergulhado na podridão generalizada. O jogo de aparências, dissimulação e cinismo de Cláudio, o rei usurpador e traiçoeiro, é apenas mais um sintoma de toda uma sociedade corrompida, que tinha no rei Hamlet o pouco que lhe sobrara de altiva nobreza, esta que seu filho não conseguiu reaver. Penso em Hamlet como uma tragédia do amadurecimento angustiante, da tomada de consciência de um mundo que se desencanta e revela seu lado mais doloroso, onde não bastou descobrir o assassinato do pai, mas ter de conviver com a própria mãe casada com esse assassino; e a loucura, que poderia ser o refúgio para este mundo degradado, talvez lhe servisse como instrumento de vingança, enquanto o destino sela definitivamente a tragédia de sua existência.
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| Publicado originalmente em março de 2017, no blog Ágora da Taba.

Palavra e silêncio: a “luta vã” no Piauí

William Roberto Cereja

Já conhecia a prosa criativa, inusitada e dialógica de Os intrépitos andarilhos e outras margens, do jovem professor e escritor piauiense Adriano Lobão Aragão. Contudo, surpreendi-me com seu novo livro de poemas As cinzas as palavras (editora Desenredos).

Nesse livro, Aragão adota uma dicção entre clássica e moderna, fazendo uso de uma linguagem enxuta e despojada. A quase totalidade de seus poemas situa-se no coração daquilo que se vem chamando de modernidade (no sentido da tradição baudelaireana ou valeryana): a metalinguagem, a poesia emparedada entre o silêncio e a palavra. O silêncio é o não canto, já cantado por Drummond e outros poetas modernos. E a palavra, muitas vezes, sem poder cantar o tempo presente, canta a própria palavra ou o próprio canto poético, especialmente neste caso, aquele ancorado na tradição luso-brasileira.

O dialogismo, tão fortemente presente em Os intrépitos, também se faz presente em As cinzas. No diálogo com Camões, temos, por exemplo, a referência a um tempo heroico passado, que já não se pode cantar, como já se via na fase lírica final de Camões:

este verbo disperso em distante campo de poeira
Areia estéril onde não canta tágide nem musa
estância onde não se encontra em seus cantos engenho e arte
(“As odes os signos”, p. 15.)

Também as reflexões em torno da passagem do tempo e das mudanças do próprio eu lírico deram origem ao poema “então”, quase uma paródia do poema camoniano “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”:

em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempo nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

[…]

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce.
(“então”, p. 19.)

Drummond está explicitamente evocado em “não cantaremos o amor”. Embora o tempo não seja de guerra, diz o poeta:

Ainda que nos fosse permitido
não cantaríamos o amor

[…]

e ainda que em nossos túmulos
habitem novamente flores amarelas e medrosas
não cantaremos este amor
que resultou inútil
(“não cantaremos o amor”, p. 59.)

Assim, cantar o impossível canto é a única opção para o poeta, que, perplexo diante de seu tempo e das armadilhas da linguagem, mais uma vez prefere a palavra ao silêncio.