Noite de dezembro

Adriano Lobão Aragão

as cinco almas desta família
reunidas no silêncio da noite
celebram sua incômoda comunhão
no rascunho de sorrisos frios
repetidos nos gestos de comer e beber

no entanto é noite de dezembro
o avô morto há duas décadas
permanece jantando na mesa vazia
indiferente aos olhares das crianças

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publicado originalmente na revista Germina

Revista Brasileira

NÃO DEIXAMOS NOSSAS PEGADAS
Adriano Lobão Aragão

não deixamos nossas pegadas
no calçamento desta rua
repleta de pedras pontiagudas

deixamos o sangue de nossos pés
cortados no jogo de bola
onde o único ofício das chinelas
era servir de trave para o gol
contado em pés descalços

então a rua deixava em nós suas pegadas
demarcadas pela tintura do mercúrio-cromo
ou pela dor do mertiolate e da água oxigenada

também a bola recebia seus remendos
quando furada cortada ou rasgada
e outra bola mais antiga cedia um recorte
que seria colado com faca quente

não deixamos nossas pegadas
no calçamento desta rua
deixamos o sangue e outras feridas ao relento
esperando o tempo decidir esquecer ou emendar

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Revista Brasileira
Fase VIII, Ano VI, Nº 91
Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2017.
Editor: Marco Lucchesi | ISSN 0103707-2
| poemas: Peito de Moça, p.232; Inhuma, p.232; Quixadá, p.233; Uruçuí, p.233; Cocal, p.233; Fortim, p.234; Ainda havia carambolos nos muros, p.235;  O muro além do jardim demarcava, p.236; Não deixamos nossas pegadas, p.237; Assar castanha, p.238. | Download da edição completa

Entrevista | Goella

Entrevista concedida a Chagas Botelho, para o blog Goella, março de 2010

Hoje, 14 de março de 2010, Dia da Poesia, o Papo do Goella faz uma entrevista com o poeta piauiense Adriano Lobão Aragão

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Goella | Você diz que sua obra está em constante mutação. Para o poeta, é importante a busca de um novo foco para um novo trabalho?

Adriano Lobão Aragão| O trabalho com a criação artística, para ser relevante, costuma lidar com a ousadia de se reinventar constantemente.

Goella | Influências, intertextualidade e releitura são palavras marcantes em sua obra. Um bom poeta é antes de tudo um bom leitor?

Adriano | Creio que deveria ser. Não como imposição, afinal, na criação artística, ninguém é obrigado a nada. Mas creio que todo escritor sempre deve ler mais e escrever menos, buscando ser o principal crítico de si mesmo.

Goella | Fernando Pessoa diz que “o poeta é um fingidor”. Você concorda com esse pensamento?

Adriano | Toda criação artística lida com algum tipo de “fingimento”. Entretanto, se é fingimento ou confissão, quem se importa? O valor de um poema está acima disso, pois se encontra na linguagem. Como escreveu Drummond, “o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”.

Goella | Você não acha que hoje os jovens leem os poetas piauienses mais por cobranças nos vestibulares?

Adriano | Não só os poetas piauienses. Quase toda a poesia lida pelos jovens piauienses limita-se àquilo que o professor trabalha em sala de aula. O que é uma pena, o que é muito pouco para uma formação cultural relevante. Compreender um poema é compreender uma importante dimensão da própria expressividade da linguagem humana.

Goella | Pra você, os melhores poetas são brasileiros ou estrangeiros? Ou não se pode fazer esse tipo de comparação?

Adriano | Há bons poetas tanto no Brasil quanto no exterior. Entretanto, em relação aos poetas contemporâneos, a produção poética portuguesa requer uma maior atenção do leitor brasileiro.

Goella | Gostaria que você comentasse a literatura piauiense de hoje e como estão as produções feitas atualmente.

Adriano | Há alguns esforços bem positivos. Admiro a poesia de Sebastião Edson Macedo e Manoel Ricardo de Lima, os contos de Airton Sampaio e M. Moura Filho, os ensaios de Wanderson Lima, para citar alguns autores de publicação recente. Mas sempre há um longo caminho a seguir. Um grande incentivo para o desenvolvimento da literatura produzida no Piauí seria a existência de leitores mais exigentes, uma crítica literária mais atuante.

Goella | Gostaria que você fizesse um comentário acerca dos seus livros, “Uns Poemas”, “Entrega a própria Lança na Rude Batalha em que morra” e “Yone de Safo”. E também que comentasse as suas atividades de poeta, professor e editor da revista literária amálgama.

Adriano | “Uns Poemas” reúne o que escrevi entre 1997 e 1998, constituindo-se para mim o início de uma necessária busca pela maturação poética que ainda não sei se consegui. Como quase todas as obras de estreia, ali estão meus principais defeitos e a gênese do caminho que escolhi seguir. “Entrega a própria lança na rude batalha em que morra” acrescentou uma preocupação com uma simbologia a partir de uma perspectiva histórica e intertextual, bem como um trabalho formal mais apurado. Cada parte de “Yone de Safo” é uma espécie de fragmento de um livro distinto que preferi não desenvolver isoladamente. Daí temos uma primeira parte lírico-amorosa, um certo erotismo, e logo depois uma parte voltada para a metalinguagem com referências bíblicas. Há ainda uma seção com poemas voltados para o nordeste e outra pseudo-memorialista. Enfim, vejo “Yone de Safo” como um caleidoscópio de temas a formas. E é justamente esse caráter multifacetado que me agrada no livro. Tentar equilibrar concisão e dispersão é sempre um desafio interessante. Esse é meu trabalho como poeta. A revista Amálgama foi um esforço em aliar crítica e jornalismo literário. As dificuldades financeiras em manter a periodicidade da revista nos levou aos meios eletrônicos, no qual atualmente edito, juntamente com Wanderson Lima, a Desenredos (www.desenredos.com.br).

Goella | E pra encerrar, hoje, no dia da poesia, qual o livro que você indicaria para o leitor do Goella?

Adriano | A “Ilíada”, de Homero, se quisermos “começar pelo começo”. Leitura indispensável. Admiro bastante a tradução de Carlos Alberto Nunes. A “Nova Reunião”, de Carlos Drummond de Andrade. 23 livro da poesia desse mestre reeditados recentemente em 3 volumes a um preço incrivelmente acessível. “O Tempo Consequente”, de H. Dobal; “O Arado”, de Zila Mamede, enfim, minha lista de leituras fundamentais seria enorme. Não conseguiria indicar um livro apenas.

Fonte | http://goellanet.blogspot.com/2010/03/papo-do-goella.html

Os tempos e a forma

Os tempos e a forma reúne num único volume cinco livros de poemas do escritor piauiense Adriano Lobão Aragão: Uns poemas (1999), Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (2005), Yone de Safo (2007), As cinzas as palavras (2009) e Entre áridos anseios dispersos (2017), além de poemas dispersos publicados entre 1997 e 1998.

Seu primeiro livro, Uns poemas foi publicado em 1999, pela Prefeitura de Teresina, através da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, como premiação pelo Concurso Novos Autores, Prêmio Cidade de Teresina, 1998. Entrega a própria lança na rude batalha em que morra foi publicado pela Fundação Cultural do Piauí, Fundac, em 2005, num volume que incluía também os livros Balé de pedras, de Wanderson Lima, e Fractais semióticos, de Demetrios Galvão. Pouco depois, foi publicado separadamente, em edição artesanal, de restrita circulação, contando com cerca de 100 exemplares apenas. Yone de Safo foi premiado, assim como o livro anterior, em concurso literário promovido pela Fundac, mas o Governo do Estado do Piauí não publicou as obras vencedoras daquele ano de 2006, sendo que o compromisso público firmado via edital terminou por cair no esquecimento. O livro seguinte, As cinzas as palavras, foi publicado em duas edições. A primeira, em 2009, apresentando somente 70 exemplares, e uma segunda, em 2014, contando com tiragem bem mais ampla e obtendo uma circulação bem menos restrita.

Para a presente edição, Os tempos e a forma, o volume Ave Eva, que havia sido publicado somente em e-book, em 2011, foi reestruturado e passou a compor, juntamente com diversos poemas inéditos, a obra Entre áridos anseios dispersos, constituindo assim sua forma definitiva.

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Adriano Lobão Aragão nasceu no ano de 1977, em Teresina, Piauí. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Além de poeta, o autor também publicou, em 2012, o romance Os intrépidos andarilhos e outras margens. Atualmente, é um dos editores da revista eletrônica Desenredos.

Palavra e silêncio: a “luta vã” no Piauí

William Roberto Cereja

Já conhecia a prosa criativa, inusitada e dialógica de Os intrépitos andarilhos e outras margens, do jovem professor e escritor piauiense Adriano Lobão Aragão. Contudo, surpreendi-me com seu novo livro de poemas As cinzas as palavras (editora Desenredos).

Nesse livro, Aragão adota uma dicção entre clássica e moderna, fazendo uso de uma linguagem enxuta e despojada. A quase totalidade de seus poemas situa-se no coração daquilo que se vem chamando de modernidade (no sentido da tradição baudelaireana ou valeryana): a metalinguagem, a poesia emparedada entre o silêncio e a palavra. O silêncio é o não canto, já cantado por Drummond e outros poetas modernos. E a palavra, muitas vezes, sem poder cantar o tempo presente, canta a própria palavra ou o próprio canto poético, especialmente neste caso, aquele ancorado na tradição luso-brasileira.

O dialogismo, tão fortemente presente em Os intrépitos, também se faz presente em As cinzas. No diálogo com Camões, temos, por exemplo, a referência a um tempo heroico passado, que já não se pode cantar, como já se via na fase lírica final de Camões:

este verbo disperso em distante campo de poeira
Areia estéril onde não canta tágide nem musa
estância onde não se encontra em seus cantos engenho e arte
(“As odes os signos”, p. 15.)

Também as reflexões em torno da passagem do tempo e das mudanças do próprio eu lírico deram origem ao poema “então”, quase uma paródia do poema camoniano “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”:

em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempo nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda

[…]

somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce.
(“então”, p. 19.)

Drummond está explicitamente evocado em “não cantaremos o amor”. Embora o tempo não seja de guerra, diz o poeta:

Ainda que nos fosse permitido
não cantaríamos o amor

[…]

e ainda que em nossos túmulos
habitem novamente flores amarelas e medrosas
não cantaremos este amor
que resultou inútil
(“não cantaremos o amor”, p. 59.)

Assim, cantar o impossível canto é a única opção para o poeta, que, perplexo diante de seu tempo e das armadilhas da linguagem, mais uma vez prefere a palavra ao silêncio.

O rio

Prefácio da segunda edição de O rio, coletânea de poemas sobre o Parnaíba, organizada por Cineas Santos e Adriano Lobão Aragão [Teresina: Fundapi, 2022]

Com sua geografia sinuosa entre os estados do Piauí e do Maranhão, o rio Parnaíba demarca nossa condição de existência nestas paragens. Do âmbito econômico ao ecológico, do cotidiano ribeirinho ao imaginário artístico-cultural, o fluir de suas águas nos acompanha, teimando em resistir ao descaso e às constantes agressões.

No ano de 1980, Cineas Santos organizou, juntamente com Paulo Machado, uma antologia poética intitulada O rio e publicada pelas Edições Corisco, tendo como tema o rio Parnaíba. Além de seus próprios textos, o livro reunia poemas de Climério Ferreira, Vidal de Freitas, Da Costa e Silva, Martins Vieira, Nelson Nunes, Álvaro Pacheco, Kenard Kruel, Clóvis Moura, Raimundo Alves de Lima, Olympio Vaz, William Melo Soares, H. Dobal, Salgado Maranhão, Rubervam Du Nascimento, Herculano Moraes, Francisco Miguel de Moura, Menezes de Moraes. Quando Cineas me convidou para colaborar numa nova edição de O rio, desde o início sabíamos que construiríamos uma obra seguindo as mesmas feições da anterior, um amálgama de gerações e versos que, a partir do rio Parnaíba, apresentam tons e pontos de vista distintos. Todos os autores (alguns de saudosa memória) e poemas constantes na edição de 1980 permanecem na atual, acrescida agora de diversas outras vozes que também ecoam e reverberam pelo itinerário deste rio.

Após os poemas, a edição original de O rio apresentava uma sessão de fotos, intitulada Imagens do rio, contando com trabalhos de Assaí Campelo, Nonato Carvalho, Jorge Riso e Aureliano Müller. Decidimos preservar tal feição imagética da obra trazendo uma seleção de fotos de Assaí Campelo feitas na época da primeira edição, apresentadas na contracapa, orelhas e ao longo deste livro. A foto da capa é de autoria de Paulo Barros.

E agora, ante suas águas, coroas, canoas e demais embarcações, seus peixes e demais viventes, fica o convite para navegar nas múltiplas correntezas deste rio.

Adriano Lobão Aragão

Estas flores de lascivo arabesco

TEU CORPO AO DORMIR MEU CORPO BUSCA
Adriano Lobão Aragão

teu corpo ao dormir meu corpo busca
em teu colo se debruça
minha face que teu cheiro aguça

minha face tua face
minha mão que tua mão segura
enquanto dorme
e segura minha mão a mão tua

teu corpo ao dormir me procura
e sobre minha perna tua perna perdura
e sobre tua perna a minha imita a mesma postura
e dura infinito neste sono a minha carne dura

encosta na minha a face tua
encosta em mim por todo sono
o seio o lábio a vulva
e deixa assim junto o sonho
de sempre habitá-la nua

e quando a mim à noite assim se debruça
mais que teu corpo meu sonho busca

Estas flores de lascivo arabesco
Poemas eróticos piauienses
Organização: Feliciano Bezerra e Wellington Soares
Teresina: Fundação Quixote, 2008
poemas: Dou-te meu cravo, Safo [pág 14] | A bailarina da Ásia [pág 15] | Assim sutil recompõe [pág 16] | Teu corpo ao dormir meu corpo busca [pág 17]

Babaçu lâmina

HÁ SANGUE NAS MÃOS
Adriano Lobão Aragão

há sangue nas mãos
que nem o esquecimento é capaz de lavar
há sangue na memória amputada dos olhos
que testemunharam dores e choques e horrores
nos dedos em riste apontando o anseio pela supressão da vida
há ainda este tempo que nada deixa amadurecer

no entanto há vida
nas mortes que vivem sem explicação
na inútil tentativa de assassinar esperanças
no grito surdo das bocas silenciadas
em todas as formas de amor que resistem à vitória do ódio

há ainda este tempo

Babaçu lâmina: 39 poemas
Organização: Carvalho Junior
São Paulo: Patuá, 2019
poema: Há sangue nas mãos [pág 17]
resenha | comprar

A vida é um ônibus

MIRÓ ATÉ
Adriano Lobão Aragão

Miró até agora
santo de rua
da Muribeca
de passos e praças
de versos desarma
as amarras do tempo

Miró até então
firme quando trôpego
lírico quando crítico
seu drible de menino
resiste na poesia
campo de eterna travessia
Miró até além

A vida é um ônibus: Miró da Muribeca
Organização: Wellington Soares e Thiago E
Teresina: Lamparina Editora, 2022
poema: Miró até [pág 10]

Destinerário

DESTINERÁRIO consiste numa jornada envolvendo poesia e fotografias que tematizam diversas cidades, sobretudo nordestinas. Cada poema, escrito inicialmente na própria cidade retratada, é acompanhado de fotografia, num trabalho de criação e execução que levou mais de três anos para ser desenvolvido. Dentre as cidades visitadas, fotografadas e que serviram de inspiração para cada um dos poemas, temos: Cocal, Campo Maior, Quixadá, Fortim, São João da Fronteira, Icapuí, Inhuma, Elesbão Veloso, Picos, Uruçuí, Ilha Grande de Santa Isabel, São João do Arraial, Paramoti, Itapipoca, Aracati, Araioses, Quixeramobim, Fortaleza, Viçosa do Ceará, Aracaju, Maceió, Timon, Santo Antônio dos Milagres, Caxias, Floriano, Oeiras, Ouro Preto, Contagem, Palmas, Campina Grande, Recife, entre muitas outras. Além de cidades estruturalmente desenvolvidas, o projeto voltou-se principalmente para pequenas cidades mais interioranas, muitas delas de ambientação tipicamente rural. Nesse sentido, procurou-se através da arte da poesia e da fotografia colaborar com a autoestima, valorização da cultural local e dialogar com os aspectos geográficos, históricos e humanos das localidades retratadas em imagem e poesia.